sábado, outubro 29, 2005
Desencoberto
calma que eu não conheço amor
como preso papagaio falador
numa jaula estreita e escura
não sei como faço para continuar a vida
pé ante pé, dor ante dor
uma pessoa triste sempre só
dó a dó, dia a dia
passa por aqui e diz alô
amanheça flor e durma lua
esperta, se renove alegria
para me fazer feliz
porque eu só não consegui
deixar de ir e dizer, amor
eu preciso ficar só, e só
você chorou e eu caí.
quarta-feira, outubro 19, 2005
Do guarda-roupa
escorrega manso pelo travesseiro
numa redundância sonora de beijos
olhos viços atrás do espelho
Nenhum capataz poderia parar
o tempo que me detém assaz
e minha mente sente abrir você
em outros mimos da doce vida
Se ao esperar não sentia
chegar o jorro e de seu morro
leitoso feito branco vulcão
esparramar larva por entre
o pijama, a tôca e o macio
cobertor risonho e matreiro
que logo mais alcançará seu cheiro
a gravar-se no lençol.
segunda-feira, outubro 03, 2005
Cada um cada um, todos iguais (trecho)
ESTE CONTO, EU O ESCREVI EM 1999, AINDA NO rIO DE jANEIRO. aPRESENTO UM PEQUENO TRECHO DELE REVISADO, QUE AO TODO ACABOU COM 10 PÁGINAS. aOS QUE O APRECIAREM, POSSO ENVIAR CÓPIA COMPLETA POR E-MAIL. pARA ISSO, DEIXE SEU COMENTÁRIO, COM O RESPECTIVO ENDERÇEO ELETRÔNICO, APÓS A LEITURA.
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Os anjos pereciam ter ouvido o pranto silencioso da mãe, coitada. O estabelecimento de Adamastor é uma decente loja de tecidos. Lá trabalham moças e rapazes que atendem às senhoras de sociedade. Lá desfilam as fazendas mais ricas que vêm da capital. Por lá já passaram funcionários que hoje são doutores. Adamastor é um bom homem e, de início, a mãe ainda acreditava, “sim, os anjos me ouviram; Genaro se submete aos bons ensinamentos de Adamastor, velho amigo dos tempos de escola”.
Aos poucos, a mãe percebeu que a morte se lhe aproximava. Os dois meses seguintes à partida de Genaro para São Félix foram meses em que na casa reinou uma paz aflita em seu coração e uma alegria incomensurável para Núncio e Rosália. A vizinhança passou a se achegar, para comer ou ver a novela. Todos notavam a palidez da senhora e tentavam fazê-la sorrir um pouco.
Para Adamastor, Genaro vinha sendo um funcionário regular. Embora desempenhasse com inteligência os seus deveres, havia nele um ar de preguiça e indolência que o incomodava um pouco. Sua voz mansa e aguda, seu jeito de falar resumindo as expressões, encurtando os cumprimentos, liberando raros sorrisos. Quando não estava atendendo aos fregueses ou recebendo orientações, nada falava; gastava a tarde a estudar o movimento da rua. Nessas ocasiões, seu Adamastor sentia uma enorme raiva, que aos poucos contaminava os outros empregados.
O que se passa na cabeça de um rapaz que parava horas a fitar a rua? O que tanto lhe atraía, entre os pedestres vestidos para a tarde? De qualquer maneira, ele lhe era útil e não parecia um aproveitador, exceto pela incrível semelhança com o pai, ausente há mais de dez anos. Corriam muitas histórias: diziam por aquela região que o pai de Genaro é um dos maiores contrabandistas do país e que fugira com a filha mais velha, pupila dele no crime. O filho não parecia ter coragem para tanto, mas nunca se sabe.
Porém Genaro estava mesmo para se aproveitar de Adamastor. Passava as tardes pensando, esperando o instante em que a oportunidade lhe surgiria, como um cometa surpreendente. Queria apanhar o máximo de dinheiro que pudesse para dali embarcar de vez para bem longe, a usufruir a riqueza que só lhe perseguia em sonhos frustrantes e que fugira junto com seu pai e sua irmã. Suas tardes eram gastas com outros sonhos prováveis, embora não menos distantes; sonhos que o levassem ao cofre.
O primeiro passo é conquistar a confiança do chefe e isso ele traçava aos poucos, misturando meticulosidade e distração, parecia absorto, enquanto calculava o modo de sar rico dali.
Nem percebia que era notado, acreditava que somente sua mãe saberia de tudo de antemão, graças àquele indelével instinto das mães. Nem percebia que a confusão de sua mente o circundava, deixando tudo à sua volta como um tribunal. Ninguém passava por Genaro sem exclamar ou se perguntar o por quê de tanta indiferença no olhar. Adamastor, dias mais tarde, passou a sentir um medo estranho. A mãe, por sua vez, perdia noites em claro, segurando um terço entre os dedos. A confiança que ele conquistava enchia de torpor a mente do comerciante e de mais indiferença ainda o rosto pálido do filho da mãe.
A oportunidade lhe veio no sopro de um dia de intensa chuva.
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